O peixinho encarnado
Já não me lembro bem como é que o Sushi entrou na minha vida. Acho que me foi oferecido por uma amiga. Tinha tido vários peixinhos encarnados quando criança. Eu queria um cão ou um gato, os meus pais deram-me um peixe num aquário redondo. Os peixes nos aquários redondos enlonquecem, diz-se. Não sei se é verdade mas é bem provável. Se eu fosse peixe, enlouquecia de certeza a andar para ali sozinha às voltas sem destino nem propósito (que é, bem vistas as coisas, o que acontece a toda a gente). Seja como seja, o certo é que os peixinhos lá tiveram o seu anunciado e precipitado fim: um belo dia, boiavam, sem um bilhete de despedida ou sequer um ai, na redondez do aquário. Fosse da loucura, da lixívia que põem na água da torneira, de algum decreto genético ou de congestão, os peixinhos encarnados morriam como tordos (aliás, os tordos é que morrem como peixinhos encarnados). E eu desisti de ter peixes.
Até que, já crescida e trintona, me ofereceram o Sushi. O Sushi durou mais que os outros todos. Um ano e meio, dois? Já não sei. Durou muito para um peixe de aquário redondo, o suficiente para eu achar que podia durar mais (para sempre?) e me tomar de amores e preocupações por ele. Uma manhã, porém, surgiu menos vivaço na arremetida para os flocos da racção, com uma descoloração nas escamas. Mais uns dias e tinha um inchaço a crescer e nadava de lado, lentamente, respirando a custo. Inconformada, liguei para várias lojas de peixes a narrar os padecimentos. «Por que não compra outro?», perguntavam-me. «Deite esse fora, não vale a pena gastar dinheiro a tentar salvá-lo».
Os peixes encarnados são baratos, muito baratos e muitos. E todos iguais: quem viu um viu todos. Não falam, não abanam o rabo, não dão marradinhas nem ronronam, não fazem nada a não ser nadar, comer e morrer estupidamente, mais tarde ou mais cedo. Nem sequer gostam de festinhas, como as raias que num aquário da Noruega vi procurarem as mãos dos turistas para longos afagos (e lá se foi o meu gosto por raia frita). Nada: é bem possível que os peixinhos encarnados nem dêem conta da nossa existência, quanto mais gostar de nós - que é o que nós queremos e exigimos de toda a gente, pessoa ou animal ou planta, em quem investimos afecto.
Normal pois que quando saí de casa com o Sushi para andar de loja em loja a tentar encontrar-lhe uma cura tenha sido olhada como louca varrida. «Deixe-o cá e leve outro», propunham-me, talvez a ponderar uma chamada discreta para o Júlio de Matos para averiguar de uma fuga. «Ele vai morrer de qualquer maneira, o coitadinho até está a sofrer.» Eu insistia: não há nada que eu lhe possa dar? Um remédio? Não, não havia remédio. A bem dizer, ninguém sabia o que o Sushi tinha. Ninguém se interessa em conhecer as doenças dos peixinhos encarnados e em encontrar-lhes cura: para quê?
Levei o Sushi para casa e esperei. Durou mais uma semana. Não tive coragem de fazer o que me aconselhavam «para lhe acabar com o sofrimento» (e com o meu, suponho): despejá-lo na sanita e puxar o autoclismo. Tinha uma esperança idiota de que ele sobrevivesse. Vi-o agonizar em absoluta impotência.
E vi-o morrer, finalmente. Mais um peixinho emcarnado para o cemitário infinito, sem história, dos peixinhos encarnados. E para o cemitério infinito das histórias de afectos improváveis e sem retorno que incansavelmente perseguimos - à volta, à volta, à volta.
Etiquetas: Geral
2 Comments:
O importante é a sensação que nos provoca, seja um peixe, um livro ou um ideal. O peixe, por ele, andaria mil vezes mais feliz nas águas livres de um rio ou de um oceano.
concordo com a fernada: os peixes encarnados são mais baratos, manobram-se melhor...
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