Civilização sem riso
Eça de Queiroz, in '«A Decadência do Riso», Gazeta de Notícias (1891)'
Desde que homem de acção e homem de pensamento são paralelamente tristes - o mundo, que é sua obra, só pode mostrar tristeza. Tristeza na sua literatura, tristeza na sua sociedade, tristeza nas suas festas, tristeza nos fatos negros de que se veste... Tristeza dentro de si, tristeza fora de si. E quando por acaso alguém por profissão tradicional, como os palhaços, ou por contraste, ou pela saudade da antiga alegria e o desejo de a ressuscitar, procura fazer rir este mundo - só lhe consegue arrancar a tal casquinada curta, áspera, rangente, quase dolorosa, que parece resultar de cócegas feitas nos pés de um doente.
Não há que duvidar! Voltaram os tempo de Albert Durer! Outra vez o famoso moço de asas potentes, no meio dos inumeráveis instrumentos das ciências e das artes, que atulham o seu laboratório, e diante das obras colossais, que com eles construiu, sente, sob esta produção excessiva que o não tornou nem melhor nem mais feliz, um imenso desalento, e, considerando a inutilidade de tudo, de novo deixa pender sobre as mãos a testa coroada de louro.
Pobre moço, que, de muito trabalhar sobre o universo e sobre ti próprio, perdeste a simplicidade e com ela o riso, queres um humilde conselho? Abandona o teu laboratório, reentra na Natureza, não te compliques com tantas máquinas, não te subtilizes em tantas análises, vive uma boa vida de pai próvido que amanha a terra, e reconquistarás, com a saúde e com a liberdade, o dom augusto de rir.
Mas como pode escutar estes conselhos de sapiência um desgraçado que tem, nos poucos anos que ainda restam de século, de descobrir o problema da comunicação interastral, e de assentar sobre bases seguras todas as ciências psíquicas?
O infeliz está votado ao bocejar infinito. E tem por única consolação que os jornais lhe chamem e que ele se chame a si próprio - o Grande Civilizado.
E entristeceu - por causa da sua imensa civilização. O único homem sobre a Terra que ainda solta a feliz risada primitiva é o negro, na África. Quanto mais uma sociedade é culta - mais a sua face é triste. Foi a enorme civilização que nós criámos nestes derradeiros oitenta anos, a civilização material, a política, a económica, a social, a literária, a artística que matou o nosso riso, como o desejo de reinar e os trabalhos sangrentos em que se envolveu para o satisfazer mataram o sono de Lady MacBeth. Tanto complicámos a nossa existência social, que a Acção, no meio dela, pelo esforço prodigioso que reclama, se tornou uma dor grande: - e tanto complicámos a nossa vida moral, para a fazer mais consciente, que o pensamento, no meio dela, pela confusão em que se debate, se tornou uma dor maior. O homem de acção e de pensamento, hoje, está implacavelmente votado à melancolia.
Este pobre homem de acção, que todas as manhãs, ao acordar, sente dentro em si acordar também o amargo cuidado do pão a adquirir, da situação social a manter, da concorrência a repelir, da «íngreme escada a trepar», poderá porventura afrontar o Sol com singela alegria? Não. Entre ele e o Sol está o negro cuidado, que lhe estende uma sombra na face, lhe mata nela, como a sombra sempre faz às flores, a flor de todo o riso. Por outro lado o homem de pensamento que constantemente, pelo fatalismo da educação científica e crítica, busca as realidades através das aparências, e que no céu só vê uma complicada combinação de gases, e que na alma só descobre uma grosseira função de órgãos, e que sabe que porção de fosfato de cal entra em toda a lágrima, e que diante de dois olhos resplandecentes de amor pensa nos dois buracos da caveira que estão por trás, e que a todo o sacrifício heróico penetra logo o motivo egoísta, e que caminha sempre à procura da lei estável e eterna, e que a cada passo perde um sonho, e que por fim não sabe para onde vai, e nem mesmo sabe quem é - não pode ser senão um triste!
Etiquetas: Eça de Queirós
4 Comments:
O Grande Civilizado!
Fez-me bem ler este trecho do meu escritor favorito. Tenho (penso eu) todos os seus livros e nunca me canso de o ler. Pelo contrário, leio-o cada vez com mais gosto. O «Crime do padre Amaro» já o devo ter lido mais de dez vezes.
Um abraço.
A. Castro,
Como diria o Grande Civilizado, é mesmo necessária a «Comment moderation» e a «Word Verification» para termos comentários felizes?
Gostei da crónica mas não gosto de como começa: significa que se os negros de África ainda riem, tal facto se deverá a alguma falta de cultura? que conceito de cultura é este? e de civilização? decerto eurocênctrica e ocidentalizada... decerto não as que encaram todos os artefactos como culturais, decerto não a da Antropologia...
"Risada primitiva" parece-me perpetuar um estereotipo preconceituoso... E significará isso que não são dados a acção e pensamento?
Pena que não posso questionar o Eça, lui-même...
De resto, retirando essa alusão decerto pouco pensada e claro, contextualmente produzida,acho que todo o texto é bastante pertinente!
Fica-me ainda a insatisfação de um Eça que não olha para o passado, onde sempre houve motivos para ficar triste e para chorar... momentos alegres e tristes sempre existiram.. mas referindo-se ele, como creio, a uma envolvência do escritor com o seu tempo, numa literatura realista, a sua posição não poderia ser senão, a das contingências da sua época. Mas convém recordar que muitos outras épocas literárias souberam ouvir e transmitir as tristezas e desplantes dos contextos que se desenvolveram (Romantismo, ....).
O bom e velho Eça....
Mesmo no século XXI a sua obra sempre tem textos e livros que valem a pena ler.
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