O que não te disse
or vezes, vejo o teu reflexo num vidro em plena rua. De relance e sem razão. E fico parado, sustenho a respiração e sei que não és tu. Como poderias ser tu se partiste há tanto tempo? Mas deixo-me ficar quedo, a saborerar aquilo que me parece ser o contorno do teu corpo, do teu rosto, com medo de me mover e fazer desaparecer aquele jogo de sombras que se assemelha a quem foste. Outras vezes, o perfume da lavanda chega até mim e lá estás tu, o teu lenço branco encharcado em perfume e o leve aroma que deixavas quando te movias pela casa. As saudades nunca morrem. As saudades têm cheiros, têm cores e habitam onde menos se espera. Dentro do nosso coração, convivem com a realidade dos dias, os nossos mortos, aqueles que amámos e de quem nunca nos despedimos verdadeiramente. E sabes, descubro agora chegado a esta fase da vida, que a dor da separação é igual, é sempre a mesma, apenas veste corpos diferentes e nome diferentes. Deve ser este o preço do amor. Mas existe quem viva bem com a saudade e eu imagino que sejam aqueles que tiveram tempo de dizer tudo o que sentiam antes da partida. A minha vida continua igual, o meu coração envelheceu mas ama da mesma forma e, por alguma razão cruel, as pessoas que mais amo são exactamente aquelas às quais nunca poderei dizer tudo ou, pelo menos, fazê-las compreender o que significam para mim. Olho o rio e sinto o escoar do tempo. Viver é isto.
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